Quem já assistiu a animes ou leu mangás ambientados nas escolas e
colégios japoneses, pôde perceber muito bem que o bullying está bem presente
nesses lugares. Isto se deve ao fato de que o bullying é um grave problema
social no ambiente escolar, sendo um dos maiores responsáveis pelo alto índice
de suicídio entre os adolescentes neste país*. Entre os mangás e animes que
retratam problemas de bullying, podemos mencionar GTO (Great Teacher Onizuka),
Vivid Strike, Naruto e tantos outros. Uma autora de mangás que merece destaque
é Keiko Suenobu, conhecida por colocar o bullying como o tema central em grande
parte de suas obras, como Vitamin, Limit e Life.
Um anime de um único episódio que mostra com crueza a crueldade e
covardia do bullying é Ijime**: Ikemie no Kyoushitsu, baseado no mangá de mesmo
nome, publicado na revista shoujo(para moças adolescentes) Ciao, de autoria de
Igarashi Kaoru. A história começa com uma voz, que faz o papel de narrador observador
onisciente que pergunta ao espectador se ele já se sentiu intimidado. Logo em
seguida, somos apresentados a uma estudante, Sera, colegial que, por ser rica,
é bajulada por todas suas colegas e demais colegiais. Devido a isso, ela se
sente livre para mandar e impor sua vontade. E, valendo-se desse seu poder, ela
lidera as colegiais para que façam bullying contra Fumika, menina inocente, por
um motivo bastante fútil: Fumika, correndo para não ir atrasada à sala de aula,
esbarrou na nova bolsa de Sera, arranhando-a. Ver um motivo tão fútil dando
início a uma série de crueldades é realmente revoltante. As meninas jogam lixo
em Fumika, puxam seu cabelo, rasgam seus cadernos, mandam-lhe recados dizendo
para sumir e destroem seus objetos e a pobre menina se vê sozinha. Os
professores, mesmo presenciando a injustiça e a violência de que ela é vítima,
nada fazem. E, na vida real, quantos estudantes vítimas de bullying não
sofreram com a indiferença dos professores que, como autoridades, deveriam
fazer algo?
Além da violência, Fumika sofre com o afastamento de sua amiga Emi que,
temendo sofrer represálias, nada faz. Ninguém quer se envolver e se percebe aí
uma crítica pesada à atitude das pessoas diante da realidade do bullying. Para
a vítima, ver que ninguém quer ajudar ou finge que não vê é tão doloroso quanto
ser agredido fisicamente e/ou psicologicamente. A vítima se sente sozinha e
desamparada, além de não entender por que a escolheram para alvo de tanta
crueldade sem motivo. É horrível ver os outros se divertindo enquanto nos
humilham de todas as formas, tratando-nos como se fôssemos objetos sem valor
que não tivessem direito a ser tratados com dignidade. Para piorar, assim como
na vida real, é frequente que nos animes e mangás se culpe a vítima, acusando-a
de fraqueza, de não saber se defender, como se o problema fosse dela, como se
ela estivesse sendo maltratada porque não presta e não houvesse nada de errado
no fato de alguém sentir necessidade de procurar alguém mais fraco para atacar
para se sentir forte e poderoso.
O momento máximo de humilhação de Fumika ocorre quando Sera e as demais
cortam seus belos cabelos. Sera se sente poderosa ao ver como sua maldade causa
lágrimas em Fumika. Entretanto, o poder de Sera terá um fim e a princesinha
mimada verá seu mundo mudar violentamente. Seu pai irá à falência e, no dia
seguinte, ela vê o retrato dela espetado com estacas e logo em seguida suas
antigas “amigas” dizem que souberam que ela perdeu tudo e não têm mais medo
dela. Sera tenta impor sua vontade mas as outras, que já não a temem, começam a
maltratá-la, chutando-a, batendo e humilhando.
Sera, que havia feito bullying com Fumika, começa a sentir o mesmo medo,
desamparo e solidão a que sua vítima fora submetida. Ela chora, implorando por
ajuda, mas ninguém virá para acudir e quem antes a bajulava agora ri enquanto
ela está caída no chão, procurando entender como isso foi acontecer com ela.
Então, as meninas revelam que sempre haviam odiado seus longos cabelos e o
cortam. Quando todas vão embora, Sera está sozinha, ajoelhada no chão,
sentindo-se como se toda a realidade que até então conhecera tivesse sido
destruída. E de fato o foi. Nada mais será como antes. Ver a mudança de
realidade de Sera nos ensina muita coisa e a faz ver algo que talvez ela nunca
houvesse percebido: ela nunca tivera realmente amigas. Todas as meninas só se
interessavam pelo dinheiro do seu pai. Sem dinheiro, para os outros, ela se
tornou um ninguém, uma pessoa que não merece consideração.
Ela se surpreende quando Fumika vai ajuda-la. Emi, amiga de Fumika,
pergunta se ela esqueceu o que Sera lhe fizera e Fumika confessa que não, mas
que sabia o que era sofrer sem que ninguém quisesse ajudar. Assim, ao lembrar
que não ajudara Fumika, Emi se dá conta de que não é melhor do que quem fizera
bullying contra sua amiga e pede desculpas e Fumika diz que ela própria deveria
ter ajudado Sera mas ficara com medo. Sera percebe como fora cruel e covarde e
pede desculpas. O fim do anime fala que todos têm de fazer algo contra o
bullying. Não basta não praticá-lo. É necessário fazer algo quando se vê alguém
sofrendo injustamente.
Se o anime tem um defeito é o de não desenvolver propriamente os
personagens, pois esquece de mostrar suas vidas pregressas antes dos
acontecimentos atuais.No entanto isto não prejudica a história, que é bastante
eficiente em contar uma triste realidade presente nas escolas do Japão e do
mundo. O anime também critica, de forma bastante contundente, aspectos errados
na sociedade: a falta de empatia para com o sofrimento de outro ser humano, o
descaso das autoridades escolares que têm o dever de cuidar da segurança e do
bem-estar dos alunos e o fato de se dar tanto valor ao dinheiro, que faz muitos
se acharem mais importantes que os outros por terem mais posses. Ter mais do
que os outros não nos torna melhores nem deve nos fazer sentir que estamos
acima de punições por agir errado.
O final do anime é incerto. Percebemos bem que o choque de realidade que
Sera experimentou fará com que ela reavalie suas atitudes, a forma como via o
mundo, as pessoas que a cercam e até a si mesma. Ao experimentar a mesma dor
que tinha causado a outra pessoa, ela adquiriu outra noção sobre o bullying:
ele é uma brincadeira apenas para quem o pratica, nunca para quem o sofre.
Sofrer bullying nunca será uma experiência agradável para alguém.
Por mostrar como as pessoas que se omitem são tão responsáveis quanto
quem faz bullying contra quem não pode se defender, Ijime é recomendável tanto
para quem está na faixa etária escolar como para os educadores. Precisa-se que
medidas sejam urgentemente adotadas no sentido de conscientizar os estudantes,
educadores e pais para que se entenda que todos devem ser respeitados no seu
direito de ter sua integridade física respeitada e que intimidar uma pessoa sob
a justificativa de que é uma “brincadeira” tem consequências danosas na psique
de sua vítima.
Usar a arte como denúncia contra o que está errado é uma boa forma de se
levantar discussões e fazer com que as pessoas que assistirem a esse anime
vejam como problemas sérios não devem ser ignorados e todas as pessoas que são
intimidadas, desrespeitadas e agredidas não podem mais sofrer injustamente.
*O suicídio é um grave problema social no Japão e, entre os motivos para
que muitos adolescentes se matem lá são não conseguir passar nos exames para
ingressar no colegial e sofrer bullying.
**ijime significa bullying em japonês.