sábado, 3 de fevereiro de 2024

A noiva fantasma: um passeio pelo sobrenatural




Entre as obras literárias modernas de temática sobrenatural, uma que certamente merece destaque e vale a pena ser lida é A noiva fantasma, de Yangsze Choo, romance ambientado em 1893, na antiga Malaia – que hoje compreende a Malásia e Cingapura – que conta as aventuras de Li Lan, bela jovem de ascendência chinesa que está na idade de casar. Li Lan recebeu educação esmerada e é graciosa, inteligente e culta, porém suas chances de encontrar um bom partido são praticamente nulas. Ela é membro da família Pan, que costumava ser abastada mas seu pai, após a morte da esposa, viciou-se em ópio e perdeu o interesse por tudo, negligenciando inclusive as suas obrigações de arrumar um marido para a filha, que não tem perspectivas de um futuro promissor, visto que o patrimônio da família foi se dissipando aos poucos devido à inabilidade do pai em gerir os negócios.

A vida de Li Lan segue de forma plácida mas tudo parece mudar quando a poderosa família Lim propõe ao pai de Li Lan que ela se case com seu filho Lim Tian Ching. Acontece que o jovem morreu há pouco tempo e Li Lan não gosta nem um pouco da ideia de ser uma noiva fantasma e casar com um defunto, ainda que isso garanta que que vá ter um conforto futuro vivendo como a viúva de um jovem rico, já que suas chances de arranjar um casamento vantajoso são praticamente inexistentes.

A partir daí, vai se desenrolando uma verdadeira trama de intrigas, mistérios e reviravoltas. Contando apenas com a ajuda de sua fiel babá Amah – que foi babá de sua falecida mãe e a criou como filha – Li Lan começa a ser assombrada em seus sonhos pelo fantasma de Lim Tian Ching e não sabe como se livrar dele e, na tentativa de resolver seus problemas, ela acaba transpondo a barreira entre a vida e a morte, entrando em um mundo totalmente perigoso. Inexperiente, Li Lan terá que vencer vários desafios, além de ver que muitas coisas não são como ela pensava e que o mundo espiritual tem regras, sendo perigoso quebra-las. Conseguirá Li Lan vencer os perigos em que se meteu?

Além de ser um empolgante passeio pelo sobrenatural, A noiva fantasma é um romance rico e detalhista, que nos apresenta aspectos interessantes da cultura chinesa, abordando elementos budistas, taoístas e outras crendices daquele tempo e lugar e nos mostrando bem como era muito mais difícil ser mulher naquela época. Com certeza, não era nada fácil só ter como opção de futuro arrumar um marido e mesmo moças que tivessem boa educação, como é o caso de Li Lan, não tinham escolha. Um outro aspecto que chama a atenção é o costume da noiva fantasma, uma tradição que certamente causa estranheza aos olhos ocidentais. A tradição de casar uma pessoa com outra que já morreu almeja acalmar espíritos ou afastar assombrações.

Enfim, em sua jornada para se livrar de Lim Tian Ching e realizar os seus sonhos, Li Lan vai enfrentando situações inusitadas e descobrindo desejos e sensações que lhe eram desconhecidos, o que leva a um final surpreendente. Tudo isto faz de A noiva fantasma um livro altamente recomendável.

 

sábado, 20 de janeiro de 2024

Os limites da vingança


Se achamos que já vimos tudo sobre violência, podemos começar a duvidar depois de assistir a Doce Vingança, uma chocante história de retaliação.

A história começa com Jennifer Hills - uma jovem escritora -  indo passar um tempo numa casa localizada em uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos para poder escrever sossegada o seu novo livro.

Parece estranho que uma mulher não perceba o perigo que é ir sozinha a um lugar ermo, onde qualquer um que queira assaltá-la ou atacá-la poderá entrar facilmente na casa que ela alugou sem que ela tenha como pedir socorro ou se defender.

Enquanto escreve e segue sua rotina, Jennifer é observada por alguns homens que moram na cidade. Eles acabam por invadir sua casa e aterrorizá-la. Ela consegue escapar e vai pedir ajuda ao xerife da cidade. Eles voltam a casa, mas Jennifer descobre que ele é amigo dos invasores. O que ocorre a seguir é uma sucessão de cenas capaz de fazer o espectador menos sensível virar o rosto. Os homens a estupram, espancam e humilham. Sua crueldade é tal que eles ainda filmam a agressão para se divertir.

Todas as cenas são lentas, mostrando toda a brutalidade a que ela é submetida de forma crua e insuportavelmente detalhada. É incrível e chocante ver a covardia dos agressores, que a torturam apenas para seu prazer insano.

Ao final, nua e machucada, ela consegue escapar e se joga no rio. Os criminosos temem que ela possa ter escapado e possa denunciá-los. Nos dias seguintes, sua única preocupação é eliminar as evidências do crime e fazer parecer que ela saiu da cidade.

Porém, a tranquilidade dos estupradores não dura muito. Alguém manda à casa do xerife uma fita com a agressão. O xerife, homem bem-casado, pai carinhoso e frequentador da igreja, fica desesperado e quer saber quem mandou aquilo, expondo-o ao risco de que sua filha "Chastity"(Castidade, em inglês), descubra seu crime.

No desenrolar dos acontecimentos, Jennifer reaparece. Sua volta é um terrível furo no roteiro. Ao fugir, estava nua e suja, mas volta com roupas limpas e aparência de quem acabou de tomar um banho. Onde conseguiu as roupas? Como conseguiu sobreviver? Bem, o filme não mostrará isso. O que será mostrado será uma outra Jennifer, disposta a se vingar da violência sofrida.

Ela não tem pressa em se vingar. Planejou tudo metodicamente, de forma a garantir que cada um dos criminosos sofra bastante. Ver sua vingança é um desafio à nossa resistência. Ela acaba por cometer atrocidades inacreditáveis para infligir dor a seus algozes. Fica subentendida uma mensagem: monstruosidade se combate com monstruosidade. Por que ela não usou a gravação para procurar as autoridades e levar os criminosos à justiça? No final, ela se tornou um monstro, sujando as mãos de sangue e ficando com o peso de cinco mortes nas costas. Isso lhe diminuirá a dor? E depois, o que ela fará para se livrar dos corpos? Como sumirá com as provas dos crimes?

Na vida real, ela perderia sua paz e acabaria sendo descoberta e presa. Qual a compensação em cometer tamanha crueldade?

Terminando de assistir, nós não conseguimos deixar de nos perguntar qual o limite da crueldade que o ser humano, seja por diversão ou vingança, é capaz de cometer para com outro ser humano.

 

 

sábado, 13 de janeiro de 2024



As histórias de fantasia sempre nos proporcionam deliciosos momentos e O último unicórnio, longa animado dirigido por Jules Bass e Arthur Rankin Jr. em 1982, baseado no romance fantástico de mesmo nome escrito pelo inglês Peter S. Beagle, é um bom exemplo desta afirmação. Feito numa época em que não se dispunha de tantos efeitos especiais, o filme é superior a muitas animações atuais por causa do seu roteiro coerente e personagens fortes e consistentes.

A história é aparentemente simples: unicórnio acredita ser o último da sua espécie, pois há tempos não vê outros, até que uma borboleta lhe diz que os demais unicórnios foram aprisionados pelo rei Haggard, que se valeu de um touro vermelho. Resolvendo partir pelo mundo para resgatá-los, acaba se deparando com perigos inesperados, mas também encontrando ajuda e conhecendo sentimentos que jamais pensaria conhecer.

Em sua jornada, o unicórnio conhece a perversa Mamãe Fortuna, que captura animais e faz as pessoas acreditarem que são seres míticos; o aspirante a mágico Schmendrick, o qual se dispõe a auxiliá-lo a encontrar os unicórnios perdidos e Molly Grue, companheira do líder de um grupo de salteadores que os ajuda a encontrar o caminho do reino de Haggard, que é triste, estéril e sombrio.

O último unicórnio está longe de ser uma simples batalha do bem contra o mal, pois chega um momento em que o unicórnio experimenta uma crise de identidade, esquecendo de sua missão e se tornando vulnerável ao sentir sentimentos tipicamente humanos como dúvida, amor e tristeza. Além disso, o clima da animação é marcadamente sombrio e fatalista, como podemos constatar nas cenas em que o unicórnio diz a Mamãe Fortuna que esta, ao capturar a Harpia, outro ser mítico, encontrou sua morte e quando o mago do rei Haggard lhe diz que ele recebeu seu fim pela porta da frente, dando-nos uma ideia de uma tragédia anunciada.

Pode-se dizer que o fim trágico que está reservado para o rei Haggard é um terrível castigo divino para o fato dele ter aprisionado seres tão fantásticos apenas para o seu divertimento, como uma criança caprichosa que pretende manipular tudo e todos ao seu bel-prazer.

Outro fator que leva O último unicórnio a destoar dos contos de fadas habituais é que não podemos esperar o típico final feliz, como bem diz o próprio Schmendrick: "Não existem finais felizes, porque nada acaba". Tudo está sempre recomeçando.

Enfim, O último unicórnio é um excelente filme de animação, com bastante magia, aventura, seres fantásticos, amizade, conflitos íntimos e até um pouco de romance, o que não decepcionará os que apreciam as histórias de fantasia.

 

 

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Um anime esquecido?







 Quem era criança nos anos 80 talvez tenha assistido a um anime chamado Rei Arthur. Como o próprio título sugere, a história fala sobre o lendário rei britânico e seus companheiros da Távola Redonda. Naturalmente, estão presentes o famoso cavaleiro Lancelote, Merlin, Morgana, Guinevere e também Tristão e Percival. Lançado numa época em que os animes não eram tão populares no Brasil como são atualmente, é provável que poucos lembrem dele, o que é uma pena, pois era um bom desenho (pelo menos na primeira fase), com um tom épico e dramático, uma trama séria - que destoava de outros desenhos da época -, personagens envolventes e bem desenvolvidos e muita ação e aventura. 

Nesta versão da lenda do rei Arthur, o nosso herói é um adolescente ainda no começo do seu reinado, que luta contra o maligno rei Levik, que tenta, com a ajuda da perversa bruxa Morgana, tomar o reino de Camelot de todas as formas. O jovem e intrépido rei, auxiliado por seus leais cavaleiros, enfrenta os inimigos com bastante coragem. Diferentemente de desenhos como He-man e She-ra, nos quais praticamente não havia violência e nem os heróis nem os vilões se machucavam seriamente, no desenho do rei Arthur pessoas boas e más se feriam, sangravam e até morriam, o que com certeza chamou a atenção das crianças que assistiam ao anime. Hoje, comparado a Cavaleiros do Zodíaco e Dragon Ball, o anime do rei Arthur pode até ser considerado suave. Obviamente, se fosse produzido hoje ele seria muito mais violento e seríamos brindados com cenas de decapitação e mutilação como vemos em Hellsing e Berserk. Talvez contivesse até cenas de nudez e sexo.

Um detalhe interessante do anime é que ele não tem o triângulo amoroso envolvendo Arthur, Guinevere e Lancelote e também não há parentesco entre Morgana e Arthur. Enquanto que, em outras versões, Morgana e Arthur são irmãos, nesta ela é apenas uma bruxa maléfica. Entre alguns pecados do anime estão o de não desenvolver bem personagens como Merlin - que, a certa altura, some sem deixar vestígios, como se houvesse evaporado - e Kay, irmão adotivo de Arthur. 

Infelizmente, na segunda fase, a história perdeu o foco. Nesta nova fase, Arthur, disfarçando-se de andarilho, resolve percorrer seu reino para conhecê-lo melhor e ajudar seu povo e se junta a outros dois andarilhos. Volta e meia, ele assume a identidade de "príncipe do cavalo branco" e combate os homens do malvado rei do Norte, cuja identidade é um mistério. O tom épico da primeira fase deu lugar a um mais cômico, o que terminou por descaracterizar por completo a trama. Para piorar, esta segunda fase não foi exibida por completo no Brasil, o que deve ter deixado muitas pessoas insatisfeitas. 

Tirando a segunda fase e alguns erros de verossimilhança, o desenho do rei Arthur é uma grande aventura, com lutas empolgantes e realistas e um protagonista apaixonante, com todas as características de um herói: coragem, honra e nobreza de caráter.


domingo, 31 de dezembro de 2023

Tomates verdes fritos: uma lição sobre amizade

 



Dia desses, lembrei do filme Tomates verdes fritos e resolvi procurar por ele no Youtube, tendo a sorte de achá-lo e assistir novamente a esse clássico dos anos 90. O filme, que se passa no sul dos Estados Unidos, começa mostrando a história de Evelyn (Kathy Bates), uma mulher de meia-idade que vive tentando agradar ao marido, Ed, que não lhe dá a menor atenção. Um dia, acompanhando o marido - que vai visitar uma parente no asilo - Evelyn acaba encontrando Ninny (Jessica Tandy), uma senhora idosa e vivaz, que começa a contar as histórias de Idgie(Mary Stuart Masterson) e Ruth (Mary-Louise Parker), duas jovens que viveram no começo do século 20. E, a partir daí, vai se desenvolvendo uma história comovente que nos faz refletir sobre a vida.

Idgie, desde criança, destoava do estereótipo da mulher sulista doce e delicada. Ousada, destemida e masculinizada, ela fazia coisas como beber e jogar pôquer, sendo uma verdadeira transgressora. Isso não foi um empecilho para que ela criasse uma forte amizade com Ruth, salvando-a de um marido abusivo. Depois, ambas começam um negócio, abrindo um pequeno café onde serviam tomates verdes fritos e outros pratos. 

A partir das histórias contadas por Ninny, Evelyn - que começou o filme como uma mulher submissa, reprimida e insatisfeita - vai aprendendo a avaliar as próprias atitudes, passando a se valorizar mais e a deixar de viver para satisfazer ao marido. A história de Idgie e Ruth acabou por lhe servir de inspiração e lhe ensinar sobre como a amizade verdadeira é uma força poderosa que nos ajuda a enfrentar os momentos difíceis.

Muito se discute sobre se Idgie e Ruth são apenas muito amigas ou se vivem uma relação homossexual mas isto não importa. O realmente importante é o que o filme nos ensina sobre a amizade. Quem tem amigos nunca está sozinho e Ninny, no fim do filme, diz que o que vale na vida são os verdadeiros amigos.

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Ijime: a crueldade do bullying

 


Quem já assistiu a animes ou leu mangás ambientados nas escolas e colégios japoneses, pôde perceber muito bem que o bullying está bem presente nesses lugares. Isto se deve ao fato de que o bullying é um grave problema social no ambiente escolar, sendo um dos maiores responsáveis pelo alto índice de suicídio entre os adolescentes neste país*. Entre os mangás e animes que retratam problemas de bullying, podemos mencionar GTO (Great Teacher Onizuka), Vivid Strike, Naruto e tantos outros. Uma autora de mangás que merece destaque é Keiko Suenobu, conhecida por colocar o bullying como o tema central em grande parte de suas obras, como Vitamin, Limit e Life.

Um anime de um único episódio que mostra com crueza a crueldade e covardia do bullying é Ijime**: Ikemie no Kyoushitsu, baseado no mangá de mesmo nome, publicado na revista shoujo(para moças adolescentes) Ciao, de autoria de Igarashi Kaoru. A história começa com uma voz, que faz o papel de narrador observador onisciente que pergunta ao espectador se ele já se sentiu intimidado. Logo em seguida, somos apresentados a uma estudante, Sera, colegial que, por ser rica, é bajulada por todas suas colegas e demais colegiais. Devido a isso, ela se sente livre para mandar e impor sua vontade. E, valendo-se desse seu poder, ela lidera as colegiais para que façam bullying contra Fumika, menina inocente, por um motivo bastante fútil: Fumika, correndo para não ir atrasada à sala de aula, esbarrou na nova bolsa de Sera, arranhando-a. Ver um motivo tão fútil dando início a uma série de crueldades é realmente revoltante. As meninas jogam lixo em Fumika, puxam seu cabelo, rasgam seus cadernos, mandam-lhe recados dizendo para sumir e destroem seus objetos e a pobre menina se vê sozinha. Os professores, mesmo presenciando a injustiça e a violência de que ela é vítima, nada fazem. E, na vida real, quantos estudantes vítimas de bullying não sofreram com a indiferença dos professores que, como autoridades, deveriam fazer algo?

Além da violência, Fumika sofre com o afastamento de sua amiga Emi que, temendo sofrer represálias, nada faz. Ninguém quer se envolver e se percebe aí uma crítica pesada à atitude das pessoas diante da realidade do bullying. Para a vítima, ver que ninguém quer ajudar ou finge que não vê é tão doloroso quanto ser agredido fisicamente e/ou psicologicamente. A vítima se sente sozinha e desamparada, além de não entender por que a escolheram para alvo de tanta crueldade sem motivo. É horrível ver os outros se divertindo enquanto nos humilham de todas as formas, tratando-nos como se fôssemos objetos sem valor que não tivessem direito a ser tratados com dignidade. Para piorar, assim como na vida real, é frequente que nos animes e mangás se culpe a vítima, acusando-a de fraqueza, de não saber se defender, como se o problema fosse dela, como se ela estivesse sendo maltratada porque não presta e não houvesse nada de errado no fato de alguém sentir necessidade de procurar alguém mais fraco para atacar para se sentir forte e poderoso.

O momento máximo de humilhação de Fumika ocorre quando Sera e as demais cortam seus belos cabelos. Sera se sente poderosa ao ver como sua maldade causa lágrimas em Fumika. Entretanto, o poder de Sera terá um fim e a princesinha mimada verá seu mundo mudar violentamente. Seu pai irá à falência e, no dia seguinte, ela vê o retrato dela espetado com estacas e logo em seguida suas antigas “amigas” dizem que souberam que ela perdeu tudo e não têm mais medo dela. Sera tenta impor sua vontade mas as outras, que já não a temem, começam a maltratá-la, chutando-a, batendo e humilhando.

Sera, que havia feito bullying com Fumika, começa a sentir o mesmo medo, desamparo e solidão a que sua vítima fora submetida. Ela chora, implorando por ajuda, mas ninguém virá para acudir e quem antes a bajulava agora ri enquanto ela está caída no chão, procurando entender como isso foi acontecer com ela. Então, as meninas revelam que sempre haviam odiado seus longos cabelos e o cortam. Quando todas vão embora, Sera está sozinha, ajoelhada no chão, sentindo-se como se toda a realidade que até então conhecera tivesse sido destruída. E de fato o foi. Nada mais será como antes. Ver a mudança de realidade de Sera nos ensina muita coisa e a faz ver algo que talvez ela nunca houvesse percebido: ela nunca tivera realmente amigas. Todas as meninas só se interessavam pelo dinheiro do seu pai. Sem dinheiro, para os outros, ela se tornou um ninguém, uma pessoa que não merece consideração.

Ela se surpreende quando Fumika vai ajuda-la. Emi, amiga de Fumika, pergunta se ela esqueceu o que Sera lhe fizera e Fumika confessa que não, mas que sabia o que era sofrer sem que ninguém quisesse ajudar. Assim, ao lembrar que não ajudara Fumika, Emi se dá conta de que não é melhor do que quem fizera bullying contra sua amiga e pede desculpas e Fumika diz que ela própria deveria ter ajudado Sera mas ficara com medo. Sera percebe como fora cruel e covarde e pede desculpas. O fim do anime fala que todos têm de fazer algo contra o bullying. Não basta não praticá-lo. É necessário fazer algo quando se vê alguém sofrendo injustamente.

Se o anime tem um defeito é o de não desenvolver propriamente os personagens, pois esquece de mostrar suas vidas pregressas antes dos acontecimentos atuais.No entanto isto não prejudica a história, que é bastante eficiente em contar uma triste realidade presente nas escolas do Japão e do mundo. O anime também critica, de forma bastante contundente, aspectos errados na sociedade: a falta de empatia para com o sofrimento de outro ser humano, o descaso das autoridades escolares que têm o dever de cuidar da segurança e do bem-estar dos alunos e o fato de se dar tanto valor ao dinheiro, que faz muitos se acharem mais importantes que os outros por terem mais posses. Ter mais do que os outros não nos torna melhores nem deve nos fazer sentir que estamos acima de punições por agir errado.

O final do anime é incerto. Percebemos bem que o choque de realidade que Sera experimentou fará com que ela reavalie suas atitudes, a forma como via o mundo, as pessoas que a cercam e até a si mesma. Ao experimentar a mesma dor que tinha causado a outra pessoa, ela adquiriu outra noção sobre o bullying: ele é uma brincadeira apenas para quem o pratica, nunca para quem o sofre. Sofrer bullying nunca será uma experiência agradável para alguém.

Por mostrar como as pessoas que se omitem são tão responsáveis quanto quem faz bullying contra quem não pode se defender, Ijime é recomendável tanto para quem está na faixa etária escolar como para os educadores. Precisa-se que medidas sejam urgentemente adotadas no sentido de conscientizar os estudantes, educadores e pais para que se entenda que todos devem ser respeitados no seu direito de ter sua integridade física respeitada e que intimidar uma pessoa sob a justificativa de que é uma “brincadeira” tem consequências danosas na psique de sua vítima.

Usar a arte como denúncia contra o que está errado é uma boa forma de se levantar discussões e fazer com que as pessoas que assistirem a esse anime vejam como problemas sérios não devem ser ignorados e todas as pessoas que são intimidadas, desrespeitadas e agredidas não podem mais sofrer injustamente.

*O suicídio é um grave problema social no Japão e, entre os motivos para que muitos adolescentes se matem lá são não conseguir passar nos exames para ingressar no colegial e sofrer bullying.

**ijime significa bullying em japonês.

 

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Aprendendo a se valorizar

 


O filme Preciosa, com Oprah Winfrey e Mariah Carey(no papel de uma assistente social), é uma história de superação, conflitos internos e externos, de descobrimento do próprio valor e resgate da dignidade, passando a mensagem de que é possível, mesmo depois de anos de indiferença, negligências e abusos brutais, encontrar forças para seguir adiante.

Claireece Precious Jones, a protagonista, é uma adolescente negra, obesa, moradora do Harlem e que é obrigada a deixar a escola por estar grávida pela segunda vez. Embora frequente a escola regular há anos, ela mal saber ler e não tem perspectivas quanto ao futuro. Moradora de um bairro pobre, Precious convive com uma mãe que a escraviza, humilha e espanca, sendo obrigada a fazer todo o serviço da casa. Além disso, ela ainda é desprezada por outra pessoas por causa de sua obesidade. Como resultado, ela odeia sua vida. Acostumada a um cotidiano áspero, seu único passatempo é sonhar acordada.

A vida de Precious começa a mudar quando, à revelia da mãe, que a chama de estúpida, incapaz e prefere que ela procure a Assistência Social, a jovem ingressa num Programa Educacional e conhece a professora Srta. Rain, que estimula as alunas a escrever sobre si mesmas, dando-lhes a oportunidade de se expressarem como indivíduos.

Aos poucos, Precious vai se abrindo e revelando seu passado triste, contando os maus tratos infligidos pela mãe, o estupro que sofreu do pai e como este a engravidou duas vezes. Ao descobrir o valor da educação, a adolescente começa a ver que não precisa ser uma eterna vítima, mas que pode adquirir o controle da própria vida e determinar seu destino e o dos filhos que teve do próprio pai.

A professora, Srta. Rain, acaba por desempenhar um papel crucial: fazer com que Precious descubra que tem grande potencial dentro de si e pode usá-lo no seu aprimoramento pessoal. Com a ajuda da professora, Precious começa a se ver como uma pessoa digna, com direito a ser respeitada. Desta forma, ela para de aceitar passivamente os fatos trágicos que a marcaram como algo inerente à vida e reage contra as brutais injustiças de sua mãe, negando-se a permanecer como vítima. Ela vê que, apesar de tantos golpes sofridos, ainda tem força e capacidade para seguir adiante na luta pela felicidade Sua alma pode estar cheia de cicatrizes, mas, ao fim do filme, vemos como ela se torna uma nova pessoa, consciente de sua fortaleza.